Contra (a) Escolha

O bom e o mau
O belo e o feio
O conhecimento e a ignorância
O sim e o não
O cheio e o vazio
O som e o silêncio

Mantêm-nos vivos

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Pergunta o Admirador ao Admirado:
- O que é que vale a pena?
O Admirado responde com um abraço e ainda diz:
- Com alguma distância, tudo.
Enquanto o tempo arde
Socorro à escrita
E quando acabar
Queimo-me

Lógica

O carro está na rua, então vou ao cinema.
A colher não está lavada, por isso bebo um iogurte.
O café está cheio e dirijo-me a uma livraria.
As escadas rolantes não funcionam e volto para o sofá.
Se estiver a chover não vou trabalhar.
Quando faltar a luz encontram-me na praia.

Erro e Verdade

“As tuas verdades e as tuas conclusões científicas encontram-se directamente ligadas às tuas metodologias.
No absoluto nada é verdade. Cada coisa é verdade de acordo com uma certa metodologia.
- Dá-me uma mentira e eu encontrarei a metodologia capaz de a transformar em verdade.
O oposto ainda é mais fácil:
- Dá-me uma verdade e eu encontrarei a metodologia capaz de a transformar numa mentira (num erro).”

(Gonçalo M. Tavares, Breves Notas Sobre Ciência)

Fonte

Foste grande fonte meu filho
Grito: pinheiros novos, lagos enormes
E a minha boca no outro extremo desta cidade
Morre

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Diz o Admirado para o Admirador:
- É fácil admirares no teu espaço e tempo e é-te difícil perdoar outras interpretações.

Sentença

Quando o véu da noiva cair sobre o altar
Ascenderei levado a braços pelos convidados
Ao julgamento final
A sensação da proximidade da morte é pessoal e localizada num espaço único do corpo.
O que a ignorar não se conhece.
O que a exteriorizar mente.
O que a partilhar vive.
Em nenhum dos casos esquecidos poderá ser cobardia.

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É estranho o Admirado não amar ninguém. E quando o Admirador soube teve de reformular a sua estética de amar toda a gente.

Dia-a-dia

- Já viste os pés
- Ontem ou hoje
- Estão iguais
- Pois estão
- Achas que devemos ir ao médico
- Estão iguais
- Por isso
- Não. Amanhã vemos outra vez
- Mas eles…
- Não te preocupes
- Preocupo-me
- Não
- Sim
- Já viste a tua teimosia
- Continua igual. Como os pés
- Pois é. És muito especial
- Tu também
- Como os pés
- E se eles não crescerem
- Ficam bonitos para sempre
- Como bonsais
- Só precisamos de continuar a amá-los
- Já nos viste!

Eu podia estar contente

Eu podia estar contente
Começa a cheirar a mar
Encontrei um avançado para me encontrar
Com o silêncio da branca espuma

Como é mais calma esta água
Espelha os sons de uma ave perdida
Uma ave que incomoda as sombras dos barcos
E a serenidade do horizonte

Porque movimenta-me
O meu contentamento está insatisfeito

Há a ausência das rochas
E o balbuciar quase violento das rebentações
É substituído pelos motores doutras aves iluminadas

Luzes que entram pelo céu adentro
Ou se encostam à terra

Encontro uma solidão preenchida noutro lugar
Encontro uma possibilidade de estar contente

Invadido por uma memória mais feliz

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Uma noite o Admirador abriu a janela e verificou mais uma vez a distância entre si e o Admirado:
A fusão era longínqua.

Desígnios de um homem

Passeia-se socialmente sobre os sabores das pessoas.
Tem ocupações prazenteiras intercaladas com as profissionais.
Todas as noites aguarda, instalado no sofá, a visita do sonho prometido. E cada acordar traz-lhe apenas uma nova viagem ao mundo dos animais.
Emigrante todos os dias.
Um como um gato que agradece a dedicação com um gesto preguiçoso.
Outro como uma tartaruga que num tempo só seu, torna-se insubstituível.
Outro como um tigre que pasma todos pela sua sedução violenta nos espaços mais privados.
Experiências e aprendizagens humanas? Ou… Transformações oníricas disfarçadas de promessas por um destino (in)definido?


Escritor

"Telefonava-lhe a meio da noite. Não importava a hora, precisava. Ela acordava sobressaltada. Ele dizia: «Sou eu.» Ela dizia: «És tu?» fingindo espanto.
Ele dizia disparates. Ela ficava a ouvir.

Isto durou alguns meses. Até ele acabar o romance que estava a escrever. Depois deixou de telefonar. Ela primeiro ficou triste e depois procurou um namorado que não fosse escritor."

(Pedro Paixão «Viver todos os dias cansa»)

Sentido contrário

"As pessoas deviam ter mais cuidado. Com o que dizem, com o que fazem. Se bem que se tiverem demasiado cuidado não dizem nem fazem nada. As pessoas deviam ser mais pessoas, embora não me convenha perguntar agora o que quero precisamente dizer com isto. As pessoas deviam estar mais juntas e mais afastadas, consoante os casos, as horas e os sítios. As pessoas deviam ter mais respeito pelo que não lhes diz respeito. Só deviam ver televisão em casa dos vizinhos.
Dito isto, a minha vida, as nossas vidas neste momento abraçadas, largam um suspiro que alguém ouve do outro lado."

(Pedro Paixão «Viver todos os dias cansa»)