Ao filho

Com o entardecer, o corpo deitou-se na luz devota e as mãos fechadas sobre o ventre sossegaram-no.
Filho meu, teu, sangue nunca visível, sexo imperceptível.
O escuro aproxima-se para sentir os movimentos brancos no líquido terminal e o sopro pequeno, numa timidez insolúvel, pacífica - o corpo.

- Filho, noutro amanhecer, caminhamos perfeito, fazemos dignidade, altruísmo, sorrimos ao centro. Sempre juntos. Até te olhar num baloiço inocente e desaparecer nesse sentimento de saudade.


(Imagem: Rui Effe)

? (22)

O Admirado na sua serena e múltipla significação foi invadido pela afirmação paradoxal do Admirador: eu não sou singular - sou, ou único, ou plural.

John William Waterhouse (1849-1917), Echo and Narcissus.



Narcissus [shouts]: "Is there anyone here?"
Echo [eagerly, scarcely believing her luck]: "Here!"
Narcissus: "Come to me!"
Echo: "Come to me!"
Narcissus [starting to get irritated]: "Why are you avoiding me?"
Echo: "Why are you avoiding me?"
Narcissus: "Here! Come with me!"
Echo [shouting in ecstasy, well aware of the sexual innuendo]: "Come with me!"

She rushes out of her hiding place and flings herself at him. Narcissus, repelled by the idea of physical contact, pushes her away, and starts to run.

Narcissus [savagely]: "Take your hands off me! No! How dare you touch me!"
Echo [screaming]: "Touch me!"

Ovid (Metamorphoses Book 3)

the effects of indie music - micael póvoa

slip into your skin - patrick watson



slip into your skin and spend the night
and get out of mine
walking the streets in dark
where lamps are the sunshine for the trees
oh for the trees

cause everybody needs somebody
to hold them down
oh everybody needs somebody
to hold them down
when your feet are leaving the ground
leaving the ground
leaving the ground
leaving the ground

be the blanket for my bones
be a place that i call home
slipped into your skin and spent the night
cause i feel like a different man
i feel it when i'm with you
when i'm with you
when i'm with you
when i'm with you

as palavras propriamente ditas


"- Quando reparo na forma como olhas para mim, quando olhas e sabes que não olho, quando vês e reparas o que faço, quando faço o que faço, e então dizes as palavras que só tu sabes, e são sempre palavras de amor, e eu penso: então eu penso que tens medo de um silêncio, um silêncio qualquer a alastrar, e que preenches como deves, ou achas que deves. Só então tu falas.
- Como agora?
- Sim, como agora. E quando não falas, são os teus pensamentos.
- Mas tu não ouves os meus pensamentos.
- Talvez por isso. Ouço o que não ouço. É o silêncio que eles fazem. O silêncio das tuas palavras perturba-me mais do que as palavras ditas, as palavras propriamente ditas. E então peço-te que fales, o que é a mesma coisa, porque não consigo suportar a ausência das tuas palavras. Ou a presença delas. Não sei.
- Então o que queres que faça?
- Apenas que faças. Que nunca digas o que fazes ou não fazes. Não me interessa o que pensas de mim, o que dizes ou consentes. É-me indiferente.
(...)
- E gostas dos meus pés?
- Acho os teus pés horríveis. Mas sou capaz de simpatizar com a tua boca. Talvez nem seja a tua boca toda, apenas o teu lábio inferior, quando o sinto entre os meus lábios, quando te beijo, ou melhor, quando não te beijo, sinto apenas os meus lábios sobre os teus, muito quietos que não parece muito um beijo.
- E gostas da minha coninha?
- Não se diz isso. É feio.
- E a coninha: achas a minha coninha feia?
- Já vi coninhas melhores, se queres que te diga. Mas não é uma coninha feia.
- Parvo.
- (...) A tua coninha só tem pouca personalidade. Não é grave.
- O que queres dizer com isso? Olha para ela com atenção.
- Estou a olhar.
- Achas que falta assim tanta personalidade? Olha bem.
- Acho.
- O que queres dizer com isso?
- Personalidade. Atitude. É uma coninha passiva. (...) É uma coninha mandriona, é o que é.
(...)
- Não te rias. Não é motivo de risos.
- Não me estou a rir.
- Então é ela. Olha para ela. Ri-se de quê, esta puta interesseirona?
- Ri-se de ti e da tua pichota ridícula.
- Qual é o mal da minha pichota? É uma pichota elegante, dir-se-ia até distinta, helénica, vigorosa, apessoada, tranquila, apolínea, marmórea e culta.
- É uma pichota pequena, meu amor. Sempre te disse que era muito pequena, parece meio atarracada. O teu pai ou mãe é asiático?
- Não.
- A tua pichota?
- Já lá esteve e não gostou.
- Só dizes disparates. Além disso gosto dela.
- A tua conversa dá-me nojo. És uma nojenta. Uma putinha nojenta. Devias ter tento na língua. (...)
- Gostas do meu cuzinho? (...) É o cuzinho mais bonito que já viste?
- Gosto. É o cuzinho mais lindo que eu já vi.
(...)
- Porque é que me bateste na cara?
- Porque és estupida como uma porta.
- Pára de me bateres.
(...)
- (...) Agora só quero me beijes.
- Não me apetece.
- Não é uma questão de vontade. A vontade tem pouco a ver com isto.
- Podes beijar-me, se quiseres. Eu fico onde estou.
- Quero.
- Gostaste?
- Gostei.
- Mas eu não te beijei a ti. Os meus lábios estão parados. Parados.
- Melhor assim.
- Sou um corpo parado e é assim que devo ser?
- Sim. Não gosto que me beijem. Gosto de te beijar prolongadamente. Mas só eu. Não é nada contigo. Mas é tudo para ti. A ideia de paertilhar só se aplica as coisas vivas e inúteis- um livro, uma laranja, um par de peúgas. para tudo o resto, as partilhas são imperfeitas, para não dizer anedóticas. As pessoas não beijam. Há sempre uma que beija mais do que a outra. Que ama mais do que a outra. Que sente ou sofre mais que a outra.
- Posso dizer que te amo?
- Não. Só eu posso dizer que te amo. E amo-te muito. Mais do que pensas.
- Talvez queiras casar comigo. És doido o suficiente para isso.
- Quero, quero muito casar contigo. Aceitas (...)?
- Porque é que estás nessa figura, de joelhos? Ficas ridículo de jorlhos, aí na alcatifa, a tua pequena pichota como um enfeite de Natal pendurado no teu corpo. Levanta-te e caminha.
- Ainda não quero ir para a caminha. Isto agora é a sério. Ouve o que te digo: casa comigo e faz de mim um homem feliz.
- Quero fazer amor outra vez.
- Primeiro, casamos. (...) Temos a minha pequena pichota como padrinho e a tua coninha mandriona como madrinha. Agora enfia isto no dedo e diz as palavras.
- Um preservativo?
- Enfia-o no dedo. (...) Agora: aceitas ser minha esposa, na saúde e na doença, até que a morte nos separe?
- Espera. Que espécie de doenças? Todas ou só algumas?
(...)
- Todas. As doenças mediavais, as viroses, a cegueira, as embolias cerebrais, aguentas tudo. Mesmo que a fatalidade meta fraldas, e nao pudermos foder mais, os nossos corpos definitivamente apagados, e que do nosso amor só reste a memória. Compreendes o que te peço? Chama-se sacrifício. E nunca saberás o que é amar alguém se não amares também o sacrifício. Porque estás a chorar?
- Nunca pensei que quisesses casar comigo. É só isso. É bonito o que dizes.
- Não consigo ver-te chorar, meu amor. Parte-me o coração.
(...)
- Pára de chorar. Cobre o teu cabelo com o lençol para eu te poder beijar sob o véu. Limpa as lágrimas com os meus dedos.
- Amo-te muito. Já to disse várias vezes, mas nunca numa cerimónia como esta.
- Também te amo muito. (...) Diz apenas qe "sim". (...) Aceitas casar comigo?
- Caso.
- Não é "caso". É aceito.
- Aceito.
- Aceitas o quê?
- Aceito casar contigo. E aceito a tua pichota pequena, meu amor. Estou a brincar. Não chores. Não gosto que chores. Os homens não deviam chorar. Olha para mim: aceito casar contigo e fazer-te o homem mais feliz. Não direi o mais feliz entre os homens, mas o mais feliz entre os homens de pichotas pequeninas. Agora ris?
- Rio.
- Estamos casados?
- Estamos, meu amor. Aos olhos de Deus somos duas almas gémeas que se encontraram no firmamento. Pára de rir.
- De Deus e do firmamento? Foi isso que disseste?
- Putinha. Minha grande, adorada, e casada putinha. Nunca nos devemos rir de Deus. (...)
(...)
- Mas eu abro o coração para Deus. Juro. É só isso que queres que eu abra?
- Não me faças rir, merda. Isto é uma coisa solene.
- Enfia a aliança. Deixa-me enfiá-la onde eu quiser.
- Pára com isso. Estou a ficar com tesão e Deus a ver.
- Não está nada. Ele fecha os olhos nestas partes.
Está a ver. Pára. Pousa a aliança. Porta-te como uma mulher casada. (...) Diz só que me amas muito.
(...)
- Eu amo-te muito."

João Pereira Coutinho.
Revista 365, numero 29.

(antes de) Ontem



AUTO-RETRATO

Chamem-me pardal
Não me faz mal
Não me assusto
Por não ter poleiro
Não há milho puro
Como o primeiro

Chamem-me palhaço
Alargo o passo
Não me envergonho
Atrás do pássaro
A nado o voo
Segue-me o rastro

Chamem-me cigarra
Não me desgarra
Nunca me calo
Canto vou danço
Trilho à formiga
Carreiro e ralo

Chamem-me cigano
Eu não me engano
Á luz da guitarra
Ao som da fogueira
Mordo a costela
Vadia que tenho

Chamem-me burro
Eu não me empurro
Entre fardo e fado
A estrela me guia
Do vosso colo
Ao cu do celeiro

Chamem-me criança
Não me descansa
Poder e dinheiro
na morte os vereis
um pardal velho
a rir-se ao espelho

(Joaquim Castro Caldas
)