Olho o vazio nocturno
Por uma multidão adentro
E espero que as vozes diagonais
Invadam a minha íris direita
Porque a esquerda foca invariavelmente
Os silêncios paralelos


Conhecimentos

Ando a céus a gaivotas
Encontro cadeiras a sons
Pareço semana a máquina
Visto fumo a aço
Falo escritos a filmes
Vejo andaimes a estômagos
Faço cortinas a pombas
Tenho música a dia
Bebo estante a metro
Abraço sinos a estrelas
Pinto aviões a panos
Pago sonho a fio
Solto letras a coração

? (10)

Enquanto o Admirado mendiga pelas suas homenagens, o Admirador persegue outros juízos porque depende deles.
Existem os verbos que são difíceis
[ou]
Os verbos que existem são difíceis
[ou]
São difíceis os verbos que existem

Resquício(s)



Um espaço desabitado
Retém memórias
Como um perfume

Pela Chuva

1- Tenho sono

2- Não penses

1- Penso que tenho sede; e tu não pensas

2- Tenho medo

1- Então pensas e tens sede

2- Vamos morrer

1- Vai chover

2- Não vai chover

1- Não tenhas medo

2- Outro dia e nada

1- Não te vou deixar desistir

2- Vou

1- Eu também

2- Não; tens de viver

1- Quero ficar contigo

2- Morres

1- Não há água e não vai chover

2- Já não tenho medo

1- Mas eu…

2- Não penses

1- Tenho sede


Casamento (do) Futuro

O dinheiro sempre foi senhor do seu nariz
Conversava com todos mas não se submetia a ninguém
Os dias podiam ficar mais escuros mas ele continuava em negociações
As noites podiam ficar maiores mas ele não se importava
O seu autoconceito era implacável em qualquer bolsa que estivesse

A electrónica era uma menina muito pacata
Obedecia às ordens dos seus programadores sem caprichos
Todos os dias era submetida a actualizações e a conexões
E mesmo durante a noite servia todas as pessoas uma a uma sem diálogos
Participava no sedentarismo de todos com toda a sua eficácia

Certo dia o dinheiro conheceu a electrónica
Num curso intensivo de estratégias de marketing
Namoraram durante um dia
Ele aprendeu a despersonalização
Ela aprendeu a globalização

Como uma imagem do futuro
Casaram numa noite veloz

Nina

“Feliz aquele que em noite assim tem um tecto por cima da cabeça, e um canto onde se aquecer” Eu sou uma gaivota… não, não é isso. O que é que eu estava a dizer? (…)
Há dois anos que não choro. Ontem, a altas horas, fui ver ao jardim se o nosso teatro ainda continuava de pé. E lá estava ele. Desatei a chorar pela primeira vez em dois anos, e foi como se uma bruma se dissipasse dentro de mim. Já não estou a chorar. (…)
Porque é que ele está a dizer aquilo? Porque é que ele está a dizer aquilo? (…)
Porque é que você diz que beija a terra que eu pisei? É preciso que me matem. Estou tão cansada! Se eu pudesse descansar… descansar! Eu sou uma gaivota… Não, não é isso.

(A Gaivota - Tchekov)

Drinking Tears From Mary

Mother Mary

Mary Love

Not Violence

Paixão de trás para a frente

Solta-se um vento em cada olhar
Em cada pessoa que passa
E os passos ocupam o pensamento
Como o mar avança sobre a areia

Nenhuma gaivota morta se alimenta
Por de trás da janela
Revisitada pela letal intermitência da paixão
Brilha, outra vez, a cada sopro sanguíneo

Corre inquieto um vento emudecido
Entre os lábios do pecado e da paixão
Alimentado entre cada visita
Do silêncio ou da solidão



(Salvador Dali)

valter hugo mãe (2)

o poeta como nu

um dia apareceu um poeta sem pétalas. nunca tal se viu
sem pétalas, dizia-se, estava igual a nu, coberto de nada
que o diferisse, como se ser poeta não trouxesse marcas à
flor da pele. algumas pessoas riram-se nervosamente, e só
por isso o estranho poeta se foi embora sem outra notícia




(blanka_sperkova)

valter hugo mãe

poema do homem sem quotidiano
era um homem sem quotidiano e nunca ninguém o viu
duas vezes, ao que se soubesse, ele dizia que não conhecia
quem era e não voltava para casa alguma. pelo caminho,
esquecia os caminhos sem remédio. muitas pessoas não
acreditavam que ele existisse e, quando o viram por uma
única vez, não lhe perguntaram nada de especial. deixaram-no
passar sem pensaram mais nisso. no fim da vida,
entre pensamentos, ocorria-lhes que teriam visto tal homem,
mas confundiam a memória do seu aspecto com a
dos forasteiros vulgares, assim, quando levavam as mãos
ao peito e rezavam por uma morte boa, achavam entre os
forasteiros uma estranha aura de santidade, como se, também
entre eles, tivesse caminhado um filho de deus ou um
simples anjo desbastado de asas

Igreja a que lhe falta um sino

Em terras medievais um dia o pároco cansado subiu aos sinos
E não mais saiu de lá até à Sua chegada

Todos pensaram falaram inventaram a sua fuga à terra

Todos os dias santos a população dirigiu-se à aldeia mais próxima
Para receberem as palavras de Deus

Todos os dias santos o pároco imaginava os seus fiéis

Um dia o acólito alérgico subiu aos sinos
E só saiu de lá quando conseguiu desprender o sino

Todos ajudaram tentaram forçaram a retirada do corpo que ficara aço

Enterraram-se os objectos sagrados na que se passaria a chamar
Igreja a que lhe falta um sino
inquietude