Dos Poemas de SALOMÃO ROVEDO e das Imagens de SIGUR ROS

20

"O amor nunca pode ser
bonito desse jeito..."
Ana Maria Pedreira

"Sussurrante e soluçante,

O amor é um embaralhado de dores,

como quem corta os pulsos.

Um trespassar de cores,

policromática miragem

do mais moderno tecnicolor,

O amor é esmaecido ou é

intenso, quando não se está

pensando nele – e tudo está bem.

O amor é lúbrico e déspota,

quando não se está fumando

– e tudo vai bem.

O amor é lírico e obsceno,

quando não se está bebendo,

– e se sente bem.

O amor é fatal e suicida,

quando não se cheira coca

– e todos, todos são bons.

O amor é azulino, quando

derrama algum sangue,

impossível de registrar."



15


"E se quiseres, lembra-te;

Se quiseres, esquece."

Christina Rosseti


"Toda casa tem um passado.

Das janelas vislumbra-se as ruas.

É nas ruas que a vida perpassa.

Dentro da casa – móveis mortos.

Dentro da casa – fantasmas circulando

Dentro da casa esboroam ficção e sonho.

– É bom ficar atento!"



AmariCanto


11

“Fomos o frágil perdão e castigo,

um pouco do ser homem e mulher.”

Xênia Antunes


"Está próximo, bem próximo,

o lado inumano e humano

do mistério feérico.

Um microssinal, sublimado,

acende sensações latentes

e todo o ser estrala.

Desperta para o impasse,

o entrave de dúvidas,

questões inamovíveis.

A simples constatação de que

em nós perdura o rotundo,

– o inexplicável nada."


AmariCanto


4

“É chegar e ao mesmo tempo ouvir,

saber entregar-se e chegar

mesmo tendo sempre que partir”.

Solange Sileikis


"Estrela-guia permite ao poeta

a magia da distância.

Permite ao amado

esse viver amado,

quase sempre adoidado

à distância.

Estrela-guia concede ao Nauta

o dom de estar no deserto

e longe te ver.

Permite ao cantor

sorver a luminosidade

distantes bilhões anos-luz.

Estrela-guia entrega ao errante

o menor amor, polígamo,

onírico, monógamo.

Permite ao solidário

sempre, eternamente,

a esperança,

sozinha e distante.

Estrela-guia devota ao Argonauta

o calor do aconchego:

para que não sofra

a decepção da frialdade.

Permite que pise teu solo

e não o desértico

solo da Lua, de Marte,

de Vênus, de Sírio."



AmariCanto


2

“Um sol que vertia sangue

sobre o monte...”

Suzana Vargas


"Manhã suspiro, manhã vã, manhã

– em suicídios despedaço.

Dia ido, dia perdido, dia falido

– em fluidos me desiludo.

Tarde orca, arde tarde, tarde morta

– em compotas, desditosa.

Sol morto, sol posto, sol baço

– em pedaços, desperdício.

Noite lenta, asquerosa, gosmenta

– entre lençóis de cetim...

Madrugada alada, alva parada

– em chumbo desesperançado.

De manhã eu piro em vão, amanhã

– em suicídios de bala de aço."


AmariCanto



2

“Venho sistematicamente

me estraçalhando

nos vidros da janela.”

Many Tabacinik


"Pouco mais que isso: poesia

de cortar os pulsos sem comoção.

Um canto mais deprimente

que heroína, mas que fala de amor.

A vida perfeitamente enojada:

viver parece nunca ter fim.

Na ausência ou na existência,

que importa? Desiludidamente.

É que depois a solidão torna

tudo demais pós-comoção.

Quem está pronto para ter o coração

partido de tristeza ainda mais?

A vida é um longo caminho

perdido entre poeira e asfalto.

Quem vai crucificar o sentimento

– esse podre coração de aço?

Quando se é jovem para sempre

toda vida é uma canção injusta."


AmariCanto


3

“El alma vuela y vuela.”

Nicolás Guillén


"Pega minhas mãos frias e beija.

Meu peito sem hálito acaricia.

Fixa meus olhos baços lacrimejantes.

Exaure-me todo, toda a resistência.

Totalmente desequilibrado em pênsil arame.

Deforma-me com tuas mãos quentes de barro.

Quebra-me os ossos, guarda-os para ti.

Elabora um brinquedo desmontável.

Traz o brilho nauseante dos teus olhos.

Baixa minhas pálpebras deslustradas.

Apaga minha penúltima Luz!”





AmariCanto



7

“Uma doce canção,

um beijo entra em mim

e dói meu coração.”

Claudia Pequeno


"Dizem que o coração não dói.

Imagino-o um feixe de músculo louco

movido a sangue que rega, bombeia,

contínua, tresloucadamente, o corpo todo.

E dói. Neste exato momento sinto

o pulmão imprensá-lo com seu fole

monstruoso contra algo – e esse terror

me tira o fôlego. Dói que nem respiro.

Sequer posso raciocinar com essa dor

que impede de deitar em decúbito:

Sento na poltrona e algum conforto

me diz que essa posição o agrada.

Mas o coração ainda dói e faz-me ver

os problemas, está me comunicando

as mil dificuldades que tem para cumprir

a função milagrosa de me manter vivo.

Semelha muito motor de velhos carros,

sofrendo encanecido para subir ladeiras

– geme, fumega, freme. E como dói,

parece me passar um recado clemente:

– Estou mal, diz choramingando, vou parar

a qualquer momento inexato, sem aviso.

Coração não mata (dizem), a morte advém

com o fim da atividade cerebral. Pois bem.

Que importa? Meu coração seguramente dói:

e quando cansado decidir parar de uma vez,

nem precisa dar sinal ou Aviso Prévio:

com ele irei também solenemente. De dor.”





AmariCanto

8

“Senti no impulso de abrir os olhos o temor de

encontrar os dela.”

Bruna Lombardi


"Antes da travessia houvera o bom Deus

ceder-me uma vez só

o prazer de despertar a teu lado.

Uma vez só – não mais – deixa-me

exercitar o direito que o tempo

úbere despejou sobre nós dois.

Quando o dia inda plúmbeo

invadir de sombra gris

tua pele de areia e vier

turvar os lençóis alvos,

um dia só – nem mais,

queria a teu lado acordar,

ouvindo teu ressonar morno,

pacífico, amante, a suspirar sonhos.

Queria uma só vez aspirar

do teu corpo algáceo

o perfume de água do mar

nas manhãs de inverno.”





AmariCanto


10

“estar assim,

de ponta a ponta esvaziado, quieto,

sem derrota de amor e de abandono.”

Vito Pentagna


"Viver sozinho é bom. Muito bom.

Desde que se viva longe da solidão.

Não. A solidão não é má companheira.

É boa a solidão sozinha.

É por causa das duas ânsias

de viver: Do jovem, quando

a vida se aproxima com

a velocidade da luz.

Do outro, para o qual ela

(senão a vida mesma),

vai se desfazendo passado,

ano-luz de velocidade.

O mundo está acabando?

Que se acabe o mundo!

– Estou infeliz...

A felicidade onde está?

Que se dane a felicidade!

– Estou na curva do oceano...

Abraçado à paixão,

não quero dela despojar-me.

Jamais. Lo que pasa es que

el mundo está borracho.”





AmariCantoAmariCanto

13

“O controlador dos universos

deu-me o dom da vida.”

Márcio Catunda


"É como quero – faço o mundo.

É como faço – quero-o assim:

Aqui e agora, nem ontem,

quente e amigo, sem amanhã.

Frio e com a aspereza do aço.

O universo é salada de alface:

Limão, tomate, cebola e alho pisado.

E azeite bastante, como tu fazes.”





17

“A tua ausência é um abismo

à beira do qual a minha vida se debruça.”

Márcio Catunda


"Quanta senda tem teu corpo?

Quero saber por inteiro,

Desvendar o teu mistério,

Quero ser teu cavaleiro.

Quanta sarda tem tua pele?

Quero contar em anos-luz,

Navegar o teu espaço,

Espaçonavegar entre asteróides.

Quanta fenda tem teu corpo?

Quero mapear desfiladeiros,

Regressando àquele porto,

Enseado em teu regaço."






AmariCanto

20

“Sálvenme de una vez

O dispárenme un tiro en la nuca.

No me gusta mirarme

En los espejos salpicados de sangre.”

Nicanor Parra


"Sim, crava as lupinas garras, em beijo

cinematográfico, mutila-me a face

e inunda de sangue tua sedenta goela.

Deixa escorrer, depois, o rubro mel

entre os lábios gelados, inquietantes,

horrendos, alucinantes, surrealistas.

Mas, para alcançar a salvação externa,

minha rainha, desiluso exijo explicação

pura sobre algumas doidas loucuras:

– Por que perder o ambicionado tesouro?

– E nos fazer gozar o desprazer antecipado?

– Por que possuir o amor indesejado?

– E nos fazer livres para o proibido?

(São clamores de magos e pajés

que não consigo compreender).






? (23)

O Admirador encontra o Admirado num local improvável e afirma: este espaço não é próprio.
O Admirado respondeu: a propriedade refere-se à ocupação do vazio.

At the end of the Rainbow - Cowboy Junkies

"Again,
At the end of the rainbow
Again,
No gold to be found
Just this cold unmade bed
The last 3 words you said
And this buzzing on
the telephone line

Paris, well, there is
fog on the Seine
Amsterdam still courses
through my veins
All these dark crazy sights,
Wouldn't be so bad
If I could just taste your
breath once again

Honey I saw your daddy
Lying by the roadside
His feet sticking out of a sack
Honey they'll be calling
To tell you that your daddy
Never will be coming back

Again
At the end of the rainbow
Again,
No words to be found
Just this voice sad and alone
Me wishing I was home
And the silence on the
telephone line
"

(in)corpóreo

Abres-me a porta da nacional

Flor indecisa com um

sorriso rubro escondido

Entro mil vezes lento para te ler

e outras mil vezes invisível

capaz de te apanhar

Nalgumas deito-me no soalho (não) sereno

E escuto o silêncio do corredor

Noutras percorro-o corajosamente

E roubo-te um beijo que generosamente me ofereceste.




Imagem: How Fortunate The Man - GreyVision

Estás aqui comigo à sombra do sol

"Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui"



Ruy Belo
Toda a Terra
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

Este podia ser o fim deste caderno desde ontem



sleep and his half-brother death -1874- waterhouse

Poema tirado de uma notícia de jornal

"João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilónia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado."


BANDEIRA, Manuel. "Libertinagem". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

Ode ao Gato

"Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite .
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro."

Pablo Neruda
tradução: Eliane Zagury


Paula Rego, Gato das Botas, 1978



Paula Rego, Jardim de Crivelli, 1090-91


p.s. Perseguição! Convencida!



Morrer (?)

"Se eu pudesse novamente viver a vida...
Na próxima...trataria de cometer mais erros...
Não tentaria ser tão perfeito...
Relaxaria mais...
Teria menos pressa e menos medo.
Daria mais valor secundário às coisas secundárias.
Na verdade bem menos coisas levaria a sério.
Seria muito mais alegre do que fui.
Só na alegria existe vida.
Seria mais espontâneo...correria mais riscos, viajaria mais.
Contemplaria mais entardeceres...
Subiria mais montanhas...
Nadaria mais rios...
Seria mais ousado...pois a ousadia move o mundo.
Iria a mais lugares onde nunca fui.
Tomaria mais sorvete e menos sopa...
Teria menos problemas reais...e nenhum imaginário.
Eu fui dessas pessoas que vivem preocupadamente
Cada minuto de sua vida.
Claro que tive momentos de alegria...
Mas se eu pudesse voltar a viver, tentaria viver somente bons momentos.
Nunca perca o agora.
Mesmo porque nada nos garante que estaremos vivos amanhã de manhã.
Eu era destes que não ia a lugar algum sem um termómetro...
Uma bolsa de água quente, um guarda chuvas ou um para-quedas...
Se eu voltasse a viver...viajaria mais leve.
Não levaria comigo nada que fosse apenas um fardo.
Se eu voltasse a viver
Começaria a andar descalço no início da primavera e...
continuaria até o final do outono.
Jamais experimentaria os sentimentos de culpa ou de ódio.
Teria amado mais a liberdade e teria mais amores do que tive.
Viveria cada dia como se fosse um prémio
E como se fosse o último.
Daria mais voltas em minha rua, contemplaria mais amanheceres e
Brincaria mais do que brinquei.
Teria descoberto mais cedo que só o prazer nos livra da loucura.
Tentaria uma coisa mais nova a cada dia.
Se tivesse outra vez a vida pela frente.
Mas como sabem...
Tenho 88 anos e sei que...estou morrendo."

Jorge Luiz Borges