Fragmentos do Manual de Leitura de Platónov (TNSJ, 2008)

“A esperança não nasce de uma visão do mundo tranquilizadora e optimista, mas sim da dilaceração da existência vivida e sofrida sem véus, que cria uma irreprimível necessidade de resgate.” (Cláudio Magris)

“Platónov parece ser o centro de um pequeno mundo provinciano. Mas esse centro aparente é tão-só um turbilhão que a si próprio se suga, se autodestrói e prejudica todos quantos dele se aproximam. Platónov é composto por vários fragmentos de seres que só não se desintegram graças ao amor que as mulheres lhe têm e à pura incoerência de que a sua pessoa é urdida.” (Béatrice Picon-Vallin)

“A história literária ocidental dos últimos dois séculos é uma história de utopia e desencanto, da sua inseparável simbiose. A literatura coloca-se frequentemente face á história como o outro lado da lua, o lado que deixa na sombra o curso do mundo.” (Cláudio Magris)

“Platónov – Rebelde insensato, politicamente e socialmente incorrecto, a personagem antecipa a figura do desesperado James Dean, capaz de arrebatar corações a duzentos à hora e morrer espatifado contra uma árvore no deserto.” (Carlos J. Pessoa)

“O progresso colectivo evidencia o mal-estar do indivíduo; ambicionar viver é coisa de megalómanos, escreve Ibsen, querendo com isto dizer que só a consciência do árduo e temerário que é aspirar à vida autêntica pode permitir que nos aproximemos dela.” (Cláudio Magris)

“Romeo Castellucci afirma que a missão do artista não consiste em dar a sua visão ou em transmitir a sua mensagem, mas muito mais em suscitar o poder de criação do espectador. Stanislas Nordey diz: o corpo do encenador é um corpo exposto, um corpo impudico.” (Alexandra M. Silva)

“Se representada a totalidade do texto, sem cortes, daria um espectáculo de pelo menos seis horas – o jovem Anton Tchékhov não tinha ainda a experiência viva do teatro.” (António Pescada)

“Ninguém está habituado. È a tirania da hora e meia!” (Nuno Cardoso)

Uma grande obra, grande não apenas em extensão mas também em densidade, permite diferentes formas de abordagem. Porque embora uma obra seja em geral maior do que a soma das suas partes, também acontece algumas partes de algumas obras valerem por si mesmas e conquistarem uma certa autonomia.” (António Pescada)


NUNO CARDOSO

“Estamos órfãos de referências.

Uma improvisação aplicada a um texto de reportório é uma operação de hermenêutica, é um estudo.

Corremos o risco de sermos uns falhados tonitruantes, com estilo, uns putativos artistas de gaveta, que pululam cada mais por aí.

A cidade do Porto é uma boa amostra deste estado de coisas, porque é uma cidade sem memória. Não há memória das companhias teatrais da década de 90, não há memória do mito fundador que foi António Pedro, e por aí fora. É uma cidade que está sempre no mesmo sítio, que está sempre a começar do zero. A sociedade de Platónov é vampiresca, também nunca sai do mesmo sítio, nunca."

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Presente menos Passado – dá resultado negativo (como 10-25=-15)” (Gonçalo M. Tavares)

Instante (III)

Eu sou uma romã.

Escrevo-te

Ardor inquieto ao som do relógio metrónomo que uma noite, quente de ansiedade, entra pela janela, perpassando as quadrículas rugosas do vidro esquecido, e invade os meus ossos; além de não me surpreender, sustem-se na respiração como uma harmonia viciada enquanto os músculos se distendem ao norte, ao centro e ao sul, e as sinapses ficam cada vez mais insistentes nas suas necessidades e respostas ao mesmo tempo soporíferas e desafiadoras.
Esta sensação instigadora bem-vinda humedeceu a pele coberta de penas descobertas e - como um símile - os lençóis no dia seguinte desejado espraiaram-se com olhos fundos no seu pingar oscilante.


O silêncio, 1911, de Odilon Redon

Porto

Poder-se-ia dizer que
vives pela morte
vives na morte
vives para a morte
vives sobre a morte
vives com a morte
Meu querido Porto vivo

(noutro quadrante lógico e\ou emotivo
substituir as palavras vives pela morres
e morte pela vida)

Passagem

- Lembras-te daquela noite em Julho

- Qual

- Quando andávamos na escola

- Na escola

- Sim, e fazíamos teatro

- Tivemos muitas

- Pois foram, e as que ficaram esquecidas

- Eu lembro-me de algumas, conta

- Estava a chover e ficámos à espera que te viessem buscar

- No portão

- Sim no portão, tu de guarda-chuva e eu no carro com a M.

- A ouvirmos a Antena 2

- Deprimente e belo

- Queria que te fosses embora e não foste

- Claro, foi uma oportunidade única e memorável

- Pelo menos pela escrita

Back?

Podia escrever-te

Sem usar-te

Uma carta de desejo

Sem beijar-te

Uma carta de amor

Sem pensar-te

Uma carta de dedicação

Sem oferecer-me

Uma carta de fidelidade

Sem despir-me

Uma carta de despedida

Sem desligar-me

Uma carta de suicídio

Sem usar-me

Podia

Sentir-me dono de mim

Tratar de mim como se se tratasse de ti

Evocação ao Deus que me ouve

Ou ao Senhor que está no meio de nós.

(En)Cantos de poeira remexida

Começam a habitar a folha de linhas em frente

Perspicazes emergem pela caneta – porque o vento

Decidiu acordar inspirado – ou porque o sol

Envergonhado sorriu de leve – só ainda

Não descobri se para mim

Ou para aquela que por mim escreve.

Começo a repetir o que diz e

Sem imitar (re)crio os seus mundos rectos

De fantasia e sonho

Que sonho como meus.

Acordado ato, mais uma vez,

Memórias decalcadas, agora a violeta (des)contente

E o mar entra pela janela

Imenso, disperso, partido

Desconexo, irreverente, insistente,

Envolvente, quente e sorrio

Como se de uma reacção alérgica se trata-se.